Prof. Dr. Luciano Queiroz: A morte do “Maior São João do Mundo” e o fim do “Parque do Povo”

Publicado em quinta-feira, junho 8, 2023 · Comentar 


Foto Reprodução

Em 2017 escrevi um texto sobre minha impressão a respeito das transformações no “Parque do Povo” e no “Maior São João do Mundo”, denunciando o caráter privatista, segregacionista e extremamente mercadológico intensificado sob a festa que surgiu com ares mais “democráticos” nos anos 1980. Lembro muito bem que a decisão que me levou a escrever o texto naquele ano, foi tomada assim que pus os pés no “Parque do Povo”. No espaço onde, outrora, a festa acontecia, ou com muita gente dançando forró, ou com barracas e trabalhadores vivendo de renda, agora me deparava com um gigantesco palco deslocado e ocupando o referido espaço para que, por trás do mesmo, fossem montados os camarotes nos quais os consumidores assistiam privilegiadamente aos shows.

Passados seis anos e voltando ao “Parque do Povo” pude constatar que essa lógica se aprofundou, intensamente. Não só o palco avançou sobre o espaço dançante como fora erguido um muro, no mesmo, que separa ricos de pobres. De um lado do muro, os ricos que têm dinheiro para comprar a mercadoria “Maior São João do Mundo”, dançam e assistem aos shows tendo o privilégio de ficarem a poucos metros do artista da noite. Do outro lado do muro, ficam os pobres que, não tendo dinheiro para o usufruto desse privilégio, têm que se conformar em dividir o pequeno espaço com um número de trabalhadores em cantos bem demarcados para vender cerveja Brahma, uma das patrocinadoras e monopolizadoras da festa e com os recicladores de latinhas que não vendo graça nenhuma na música procuram ganhar o seu ganha pão “fazendo bico”. Aos empurrões e lotação do pequeno espaço, do lado de cá do muro não se tem o privilégio de sequer chegar perto do palco e assistir ao show do seu artista preferido. Resta fazer uma “selfie” à muita distância, postar no historie do seu Instagram e chegar perto do palco mediado pela câmera de seu aparelho celular. Recomenda-se beber e comer pouco, pois as mercadorias estão às alturas e a inflação no “Parque do Povo” parece maior do que fora dele.

Do outro lado da pirâmide, temos as ilhas de “forró de pé de serra”, talvez a única coisa que vale a pena e que sobrou do São João dos anos 1980 e um pequeno palco no qual é colocado uma atração que não tem o mesmo valor de troca que as bandas/empresas que lotam lá na parte de cima. Contudo, resta dizer que na área de baixo continua-se ostentando a réplica da catedral que, juro não sei a que veio, e do antigo Cabaré Eldorado no qual, em seu interior, apenas endinheirados podem se dar ao luxo de sentar em uma mesa e consumir. Não tem mais barraca, e sim, espaços nos quais as mesas se encontram sob a marca dos grandes bares e restaurantes da Manuel Tavares e companhia.

Além do muro do apartheid social no lado de cima e dos grandes restaurantes de Campina Grande do lado de baixo, só restou aos antigos barraqueiros e barraqueiras lavrarem o seu protesto diante do prefeito de Campina Grande. Esses trabalhadores  e trabalhadoras gritavam a palavra de ordem “QUEREMOS TRABALHAR”, reproduzindo um costume de quase quarenta anos, tempos nos quais se organizavam para passar o mês inteiro no “Parque do Povo” afim de ganharem a vida ao menos por algum tempo, dado o número de desemprego e trabalho precário existentes na “Rainha da Borborema”.

Piorando a situação, quem não pode ir aos camarotes ainda têm de enfrentar a triste situação de se organizar para ir à festa e ser barrado nos portões de entrada. Isso mesmo: enquanto Xand Avião fazia seu “show” presenciei, de perto, um dos portões já fechado, pessoas na fila lá fora e um verdadeiro esquema policialesco protegendo o portão que mais parecia cena de guerra. Seguranças privados e Polícia Militar guarneciam as entradas proibidas ao templo do dinheiro. E ainda tive que ouvir os apresentadores oficiais comemorarem gritando a plenos pulmões que “os portões já estavam fechados”, e que “já haviam sessenta mil pessoas no Parque do Povo”.

Um dia antes, o cantor Flavio José teve seu tempo de show reduzido em detrimento do apoiador de fascista, Gustavo Lima, numa demonstração que já vem sendo feita de surrupiarem o forró de tradição jacksoniana e gonzagueana em proveito do sertanejo, de religiosos e DJ. A prefeitura fez um jogo de cena ao pedir desculpas ao Flávio José quando, em verdade, o prefeito não manda mais em nada já que a festa foi integralmente privatizada e a empresa compradora da mercadoria “O Maior São João do Mundo” faz dela o que bem entender no sentido de faturar uma gorda bolada. A empresa compra e vende a festa-mercadoria em uma transação comercial pouco democrática. Ela só divide o lucro com as outras grandes empresas cujas marcas aparecem todas as noites na frente dos camarotes e que também ampliam seus capitais e engordam suas contas bancárias.

Não tenho a menor dúvida de que “O Maior São João do Mundo” morreu. Mas é preciso dizer a causa morte que consta no seu obituário. Morreu de morte matada. E quem deu o primeiro golpe de misericórdia foi a oligarquia Cunha Lima quando entregou, de presente, a festa para o capital administrar. As empresas capitalistas se encarregaram de levar o “Maior São João do Mundo” aos últimos suspiros e, enfim, sua morte. Mas é preciso dizer que a festa morreu para os pobres trabalhadores, para as classes e grupos subalternos, já que para setores que se auto intitulam de classe média, para setores burgueses, turistas ou não, a festa continua viva.

Por mais irônico que possa parecer, os matadores da festa se rebelaram contra o seu “criador”. O grupo Cunha Lima mirou sua artilharia para a festa que Ronaldo, com tanto orgulho, se dizia criador. Resta agora uma múmia embalada no sarcófago da pirâmide do “Parque do Povo”, repouso para um corpo envelhecido e sem vida, adormecido e descansando sob as cinzas dos anos 1980. Teríamos que acreditar na reencarnação da múmia que à espera de um Ronaldo viesse vivificá-la, ou que a morte da festa é fato consumado e a múmia vai ficar eternamente no interior da pirâmide já que a festa está condenada. Se tivesse que arriscar um palpite, ficaria com a segunda opção.

Redação/Blog Luciano Historiador 

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