João Pessoa é a única capital do Brasil que tem três bairros que homenageiam figuras ligadas à Ditadura Militar, afirma o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública da Paraíba. O órgão é responsável por formalizar uma recomendação conjunta com o Ministério Público da Paraíba (MPPB) que definiu um prazo de 15 dias úteis para o Município de João Pessoa apresentar um plano de mudança dos nomes de endereços públicos que remetem à ditadura militar.
“Existe o direito da sociedade – não apenas das vítimas daquele regime ditatorial e de seus familiares – à memória e à verdade. Isso significa que todas as pessoas têm direito de que a história seja contada como realmente aconteceu, que não haja uma distorção da história, uma tentativa de revisitação do que ocorreu”, afirma a coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública da Paraíba, Fernanda Peres.
O procurador-geral de João Pessoa, Bruno Nóbrega, afirmou à TV Cabo Branco que recebeu o documento nesta segunda-feira (24), e que analisará a questão jurídica antes de encaminhar o assunto ao prefeito do município, Cícero Lucena (PP).
A solicitação pede a renomeação de espaços listados no Relatório Final da Comissão Municipal da Verdade da capital, incluindo bairros, avenidas e uma escola. O documento sugere a publicação de um decreto para alterar gradualmente as homenagens a figuras ligadas ao regime militar, entre os anos de 1964-1985.
Além dos bairros que homenageiam os presidentes Castelo Branco, Costa e Silva e Ernesto Geisel, citados pela Defensoria Pública, João Pessoa também conta com o bairro Valentina de Figueiredo, que homenageia a mãe do presidente João Figueiredo, o último do período da Ditadura Militar. (confira a lista abaixo)
“A manutenção dos nomes nesses logradouros e prédios públicos significa que, até hoje, o Estado ainda perpetua essas homenagens. Em outros municípios, essa renomeação já aconteceu. Esperamos que o capital também acate e possa ser realizado. Mas, caso isso não aconteça — o que não é o esperado —, nós, Defensoria Pública e Ministério Público, tomaremos as providências judiciais cabíveis”, afirmou Fernanda Peres.
“Fundamental reconstruir a memória histórica da nossa cidade”, defende historiador
O historiador Rodrigo Freire explica que a Ditadura Militar foi um regime autoritário que violou direitos humanos e a democracia da época.
Segundo Rodrigo, que é especialista em Ciência Política, o regime buscava se perpetuar por meio da construção de uma memória histórica alinhada aos seus interesses. Como parte dessa estratégia, bairros e ruas foram criados e nomeados em homenagem a pessoas diretamente ligadas à ditadura.
O historiador também destaca que 40 anos após o fim do regime e após diversas Comissões da Verdade, ficou comprovado que muitas dessas figuras estiveram envolvidas em violações de direitos humanos durante o período.
“A cidade não pode passar essa mensagem, que constrói uma memória adequada ao regime ditatorial. O fundamental, portanto, é que reconstrua essa memória histórica de nossa cidade de maneira adequada à democracia”, afirmou Rodrigo Freire.
O Ministério Público mencionou alguns logradouros que fazem referência a figuras do regime militar. Entre eles, estão:
- Avenida Presidente Castelo Branco e bairro Castelo Branco: fazem referência ao marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente do Brasil após o golpe militar e criador do Serviço Nacional de Informações (SNI);
- Bairro e rua Costa e Silva: homenagem a Arthur da Costa e Silva, presidente que instituiu o Ato Institucional número 5 (AI-5), que endureceu o regime;
- Rua Emílio Médici: referência ao presidente que comandou o período mais repressivo da ditadura e implementou o DOI-Codi;
- Bairro Ernesto Geisel: faz referência ao general Ernesto Geisel, que comandou o país entre 1974 e 1979.
A recomendação do MPPB e Defensoria Pública
O documento foi enviado ao prefeito Cícero Lucena (Progressistas) e assinado por promotores como Fabiana Maria Lobo da Silva e Francisco Lianza Neto, além de defensoras públicas do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos.
Os órgãos reforçam que, mesmo após 40 anos da redemocratização e de alertas de comissões da verdade em âmbito nacional, estadual e municipal, a cidade mantém símbolos que “contradizem princípios democráticos”.
A justificativa legal inclui leis municipais e artigos constitucionais que defendem a dignidade humana e a repulsa a regimes autoritários.
A recomendação não prevê sanções imediatas, mas pressiona por uma revisão simbólica da memória urbana. Caso a administração municipal não se manifeste, os órgãos podem adotar medidas judiciais.
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Sede do Ministério Público da Paraíba (MPPB), em João Pessoa — Foto: Ascom/MPPB
Contexto histórico e recomendações
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014, identificou 377 agentes do Estado responsáveis por crimes durante o regime e recomendou medidas para evitar novas violações. Entre as ações sugeridas, está a alteração de nomes de locais públicos que homenageiam envolvidos no período.
“Dentre as recomendações da CNV está a de ‘promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais, que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações’”, detalharam os promotores de Justiça.
Na Paraíba, a Comissão Estadual da Verdade também propôs, em relatório de 2017, a renomeação desses espaços, sugerindo que recebessem nomes de vítimas da repressão.
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Comissão da Verdade concluiu que 125 pessoas foram torturadas na Paraíba ou paraibanos torturados em outros estados, entre os anos de 1946 e 1988 — Foto: Diogo Almeida/G1
Mesmo passados mais de 10 anos da publicação do relatório final da CNV, João Pessoa ainda possui logradouros com referências a figuras associadas ao regime militar. Os promotores destacam que há uma lei municipal que impede a alteração de nomes de logradouros após 10 anos de consolidação. No entanto, argumentam que essa norma não deve prevalecer sobre princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito e da dignidade humana.
A promotora de Justiça Fabiana Lobo destacou ainda a existência de um movimento nacional que exige o cumprimento da recomendação da CNV. “Em dezembro do ano passado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou uma ação movida pela Defensoria Pública da União e pelo Instituto Vladimir Herzog e determinou que a Prefeitura de São Paulo estabelecesse um cronograma para mudar nomes de ruas e instalações que homenageiam pessoas ligadas à Ditadura Militar”, disse.
Locais que podem ter os nomes alterados
- Bairro Castelo Branco
- Bairro Costa e Silva
- Bairro Ernesto Geisel
- Avenida General Aurélio de Lyra Tavares
- Avenida Presidente Castelo Branco
- Praça Marechal Castelo Branco
- Rua Presidente Médici
- Rua Presidente Ranieri Mazzilli
- Travessa Presidente Castelo Branco
- Loteamento Presidente Médici
- Escola Municipal Joacil de Brito Pereira
Redação/G1 PB