Ditadura monitorou 25 mil opositores brasileiros e sugeriu elevar repressão

Publicado em sábado, setembro 12, 2020 · Comentar 


O regime militar (1964-1985) monitorou 25 mil opositores brasileiros considerados subversivos. As informações constam de um relatório do serviço secreto da Aeronáutica, do início da década de 70, e que sugeria a necessidade de ampliar a repressão. Detalhes de operações para desmantelar focos de resistência indicam como o monitoramento era traduzido em ações concretas por parte dos militares.

O informe foi elaborado na época pelo brigadeiro Newton Vassalo da Silva, chefe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, o CISA, que integrava a estrutura de repressão durante a ditadura.

O Ministério da Defesa, procurado pela coluna para comentar o documento, afirma que “qualquer avaliação de fatos passados, à luz do presente, portanto, fora do seu contexto histórico, é completamente inadequada, provoca uma distorção da realidade e pode vir a desinformar o leitor.”

“Além disso, os fatos relativos ao período militar já foram objeto da Lei de Anistia, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal”, completaram os militares.

A informação será submetida às Nações Unidas (ONU) pelo Instituto Vladimir Herzog, a partir de um trabalho do pesquisador e jornalista Eduardo Reina. A iniciativa ocorre num momento de profundo mal-estar entre os relatores da ONU diante da postura do governo brasileiro de negar o passado, receber suspeitos de crimes contra a humanidade e de fazer apologia de torturadores. Procurado pela coluna, o Itamaraty se manteve em silêncio diante de perguntas sobre como irá responder à iniciativa.

Nesta semana, o UOL publicou a troca de cartas entre Brasília e Genebra que revelam troca de farpas entre as autoridades e uma preocupação real da entidade internacional.

A coluna também revelou como Grupo de Trabalho da ONU sobre Desaparecimentos Forçados pediu para realizar uma missão ao Brasil, sem jamais ter recebido uma resposta positiva.

A entrega das novas evidências à relatoria da ONU de Memória, Verdade e Justiça ocorrerá no dia 21 de setembro em Genebra (Suíça).

Uma peça central nessa ofensiva será os documentos do pesquisador sobre a dimensão do monitoramento de milhares de pessoas.

Documento de inteligência da Aeronáutica lista estimativa de integrantes de movimentos antiditadura - Divulgação/Instituto Herzog

Documento de inteligência da Aeronáutica lista estimativa de integrantes de movimentos antiditaduraImagem: Divulgação/Instituto Herzog

47 organizações contra o regime foram identificadas

O documento se refere a uma apresentação do brigadeiro Vassalo, em 11 de agosto de 1972, ao Alto Comando da Aeronáutica. O encontro ocorreu dentro do gabinete do Ministro da Aeronáutica.

Em seu levantamento, o militar relatava que, à época, os órgãos de espionagem das Forças Armadas haviam identificado 47 organizações subversivas no Brasil. Dessas, 15 estavam em “franca atividade”.

Ao mapear essas forças subversivas, o brigadeiro, por exemplo, identificou o Partido Comunista Brasileiro (PCB) com aproximadamente 17 mil integrantes — a maior entre as organizações citadas.

Em segundo lugar no monitoramento do militar aparece a Ação Popular (AP), com 1,7 mil membros. Entre eles estava Herbert de Souza, o Betinho. A VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), do ex-capitão do Exército e integrante da luta armada Carlos Lamarca, assassinado em setembro de 1971, era apresentada como uma força com cerca de mil pessoas.

Naquele momento, o Brasil tinha 93 milhões de habitantes. Também eram monitoradas entidades como a POLOP (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária), PCdoB (Partido Comunista do Brasil), PC BR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro), PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores), PORT (Partido Operário Revolucionário Trotsktskista) e a ALN (Ação Libertadora Nacional).

Os perfis das organizações subversivas

Em sua apresentação, Vassalo informava que os grupos de subversivos identificados em 1972 utilizavam “táticas de atração” da população que giravam “em torno de quatro grandes campos ideológicos”.

Um deles eram as “organizações proletárias”, que tinham como objetivo atrair o operariado, enquanto entidades “reformistas” visavam a parcela conservadora da sociedade. O serviço secreto também apontava para a existência de “organizações militaristas”, que “visam a violência”, além de “populistas, que visam o povo como um todo”.

Mas os militares eram da opinião de que o movimento subversivo era mais amplo e estava infiltrado em outros segmentos da sociedade. “Como se isso não bastasse, temos ainda a subversão branda e de difícil acesso”, diz o informe.

Os serviços de inteligência defendiam que outros quatro setores da sociedade que deveriam ser investigados e monitorados para evitar a propagação do comunismo.

Universidade, o “celeiro de todos os problemas” na visão militar

Um deles seria a imprensa. Segundo o informe, ela estava “infiltrada pelos intelectuais comunistas de todos os matizes”. Outro setor que deveria ser alvo de monitoramento era a universidade. No documento, os militares explicitam sua avaliação sobre o meio universitário: “Celeiro de todos nossos problemas”.

Na mira militar estava também o clero, através da Igreja Católica Progressista. Havia ainda a Frente Brasileira de Informações, que atuava no exterior e “promovia negativamente” a imagem do Brasil em outros países, na versão dos militares.

Na avaliação do pesquisador Eduardo Reina, o documento pode sugerir que a dimensão da repressão foi maior do que se conhecia até agora. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) listou em seu relatório final em 2014 a existência de 434 mortos e desaparecidos políticos entre 1946 e 1988, dos quais a maioria ocorreu no período entre 1964 e 1985.

“Mas ao se levar em conta o número de 25 mil pessoas monitoradas somente em 1972, segundo mostra a palestra e o relatório do CISA, esse número pode ser bem maior”, apontou Reina, que é o autor do livro “Cativeiro sem fim: as Histórias dos Bebês, Crianças e Adolescentes Sequestrados Pela Ditadura Militar no Brasil”.

“Esse relatório do CISA descoberto pelo jornalista Eduardo Reina fala de como não conseguimos superar nosso legado autoritário, e que esse governo antidemocrático é a prova disso”, declarou o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili. “Este governo, que usa do aparato do Estado para vigiar e perseguir opositores, como ficou explícito com o dossiê sobre antifacistas, é o mesmo governo que faz elogios descarados à ditadura militar que monitorou, perseguiu e vitimou milhares de pessoas”, completou.

Relatório sugere aumento da repressão

Um objetivo norteava todo o monitoramento dessas entidades e indivíduos considerados como subversivos: frear a “ameaça comunista”.

Esses opositores, portanto, eram considerados como “inimigos internos” os que estavam mobilizados para supostamente implantar o comunismo no Brasil.

Segundo o documento, militantes comunistas brasileiros tentavam de vários modos instalar no Brasil “o processo revolucionário em sua 3ª fase — o da ação propriamente dita”.

Não por acaso, em 1972, Vassalo defendeu na apresentação ao Alto Comando da Aeronáutica uma incremento das ações de repressão contra os subversivos e indicou que aquilo era um pedido do próprio ministro da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Joelmir Campos de Araripe Macedo.

“É inegável a existência de um processo subversivo em marcha no Brasil”, disse. Para os militares, isso tudo seria “comandado do exterior”.

“Perigo vermelho”

Para acabar com o “perigo vermelho” a Aeronáutica elaborou o “Planejamento do Ministério da Aeronáutica na Segurança Interna” e atuava em conjunto com o Exército, Marinha, Polícia Federal e demais órgãos de repressão, como os DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna).

Na avaliação dos militares, esse movimento subversivo apenas não tinha mais sucesso por conta da desorganização da oposição e por não contar com um “líder carismático”.

Se tais elementos fossem superados, o regime acreditava que os militares teriam “um problema bastante difícil de resolver”.

Falando abertamente em “despreparo” das Forças Armadas, o militar cita os motivos. Um deles seria “a falta de motivação das Forças Armadas para a realidade da situação, embalada que está pelo deslumbramento do nosso progresso”.

O Brasil em guerra interna, segundo as Forças Armadas

Outro fator seria o uso de técnicas e táticas “não adequadas para enfrentar uma guerrilha”, além de um “treinamento insuficiente”. Naquele momento, o militar alertava que o que existia em termos de combate à subversão não estava sendo “satisfatório”.

Nos documentos, os militares dão detalhes de algumas das principais operações para desmontar focos dos guerrilheiros e alvos subversivos. Numa delas, 50 pessoas foram presas. O documento ainda detalha como o.CISA estabeleceu uma divisão do território nacional para a atuação e como operações destruíram cabanas, galpões e confiscaram materiais e equipamentos de alguns desses grupos monitorados.

Vassalo admitiu que brasileiros estavam sendo mortos durante o combate aos subversivos, mas pediu especial atenção às vítimas militares e especial reconhecimento aos resultados alcançados no combate ao inimigo interno.

A estratégia tomava como base a “Doutrina de Segurança Nacional”, desenvolvida pela Escola Superior de Guerra. Tal doutrina consistia em enquadrar a sociedade nas exigências de uma guerra interna e envolvia ações físicas e psicológicas.

Para implementar essa doutrina, as forças militares desencadearam uma “guerra anti-subversiva” ou “guerra antirrevolucionária”.

“Era considerado subversivo, comunista, qualquer um que estivesse à esquerda da doutrina militar vigente”, aponta Reina.

Outro foco era ainda o de naturalizar o estigma na sociedade contra a oposição, fabricando o “subversivo” e torná-lo um perigo a ser combatido. A repressão, assim, estaria justificada.

Reina aponta que a criminalização do diferente, daquele que pensasse ou agisse de maneira não condizente com o regime, foi fundamental para que as perseguições, torturas, prisões e até mesmo mortes, sequestros e desaparecimentos, fossem aceitas e justificadas pelos militares como “ações necessárias em prol do bem-estar do Brasil”.

Da redação/ Com UOL

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