Festejar o Corpo de Deus

Publicado em sábado, maio 26, 2018 · Comentar 


Dom Marcelo Carvalheira, num depoimento sobre Dom Hélder Câmara, disse que o “Dom” dormia pouquíssimo e, em noites de lua quando ele percebia a luz entrar pelas frestas da janela de seu quarto, abria a janela para contemplar a lua. Dom Marcelo então perguntou ao “Dom”:

– “Quando isso acontece, o que é que o Sr. Faz?” Ao que Dom Hélder respondeu: – “Aaah!! Eu? Eu danço!!! Danço como louvação ao Criador e Pai”

A glória de Deus passa pela corporeidade, pelos sentidos e se expressa na materialidade simples e bela das coisas que ele mesmo criou. O próprio Dom Helder dizia que o maior cansaço se dissipava ao “mínimo contato com a natureza e com as artes, dentre elas a música e sobretudo a dança”.

Há pessoas que não querem e muitas vezes não conseguem corporizar a sua espiritualidade e, pessoas assim tem dificuldade inclusive em dimensionar a vida em Deus para as questões mais urgentes da existência a começar por sensibilizar-se e solidarizar-se com a miséria alheia, a famosa opção preferencial pelos pobres, qual proposta fundamental do evangelho.

O Papa Francisco na Exortação Apostólica sobre a Santidade no Mundo Atual: Alegrem-se e exultem (19 de março 2018), propõe as Bem Aventuranças (Mt 5, 3-12) como caminho de santificação e o capítulo 25 de Mateus como regra de comportamento para quem quer ser santo: a santidade é concreta, real, palpável, Deus não é somente um nome, Deus tem um Rosto, e Deus quer que no Rosto dos necessitados (DAp) o seu próprio Rosto seja identificado, então quando rezamos, adoramos, celebramos a Santa Liturgia se for verdade que encontramos o Rosto de Deus a quem não vemos, deverá ser mais verdade ainda, encontrar o Rosto dele nos irmãos a quem vemos, para não corremos o risco de sermos reprovados como mentirosos (1Jo 4,19).

Falando aos Bispos italianos sobre a coerência e a transparência na administração dos bens da Igreja Francisco afirmou: “não se pode falar dos pobres e viver como faraós” (abertura da Assembleia Episcopal Italiana, 22 de maio de 2018). “Ser santo não significa revirar os olhos em um suposto êxtase” (GE, 96).

Do autofalante da torre da matriz, enquanto o povo chegava para missa,  muitas vezes se ouvia o disco tocar esta canção: “Do que me adianta louvar a Deus , me ajoelhar, pedir perdão e me benzer, se ali logo adiante ao encontrar o meu irmão disser que não, não tenho tempo pra me envolver. Serei julgado pelo meu Senhor por tudo que eu fizer, e pelo que eu não fizer por meu irmão, serei julgado pelo meu Senhor. (CD Graça e Paz, Pe. Zezinho, 1985).

A espiritualidade cristã é radicalmente encarnada, o Verbo de Deus se fez carne, armou sua tenda no meio de nós (Jo 1, 14). Deus tornou-se homem concreto em Jesus Cristo (Fl 2,7). Ele tem um corpo, e no corpo fez a vontade de Seu Pai (Hb 10, 5-10).

A Igreja, Povo de Deus, é também Corpo, Corpo de Cristo, sacramento de salvação (Rm 12,4-5; LG 48).   A liturgia expressa a comunhão com o Corpo do Senhor. Pois Ele mesmo ofereceu o seu Corpo para perpetuar, até que ele venha, a sua Presença entre os crentes. Isso é maravilhoso! E nós Católicos temos um dia inteiro para festejar liturgicamente o Corpo do Senhor, o Corpo de Deus, para evidenciar a concretude de nossa fé.

Todos sabemos do grande apreço de Bento XVI pela bela liturgia, pelo primado de Deus no mundo; seus críticos são cruéis e dizem que ele cometeu exagerados retrocessos e há os que  se dizendo admiradores, superficialmente reivindicam nele suas próprias esquizofrenias espirituais e litúrgicas, seus voos etéreos, por demais espiritualizados, ao ponto de nunca tirarem os olhos das estrelas.  Fato é que a espiritualidade litúrgica de Papa Ratzinger é muito encarnada, nada abstrata e, não admite dualismos:

O Cristianismo, não é simplesmente espiritualização ou moralização, ou seja, Cristo é o «Logos», é a Palavra encarnada, e Ele reúne-nos a todos, de modo que n’Ele e com Ele, no seu Corpo, como membros deste Corpo nos tornamos realmente glorificação de Deus. […] a verdadeira liturgia é a do nosso corpo, do nosso ser no Corpo de Cristo, como fez o próprio Cristo a liturgia do mundo, a liturgia cósmica, que tende a atrair todos a si. (Lectio divina 15 de fevereiro de 2012).

Aqui Bento XVI vai ao fulcro de uma questão fundamental para vivenciar a fé: a necessidade de articular espiritualidade e corporeidade e afastar-nos da visão dualista que a filosofia grega em determinados momentos incutiu no cristianismo.

O nosso corpo, a realidade, o concreto, são em Cristo, no seu sacrifício, nosso sacrifício, o Sacrifício dele é nosso; em Cristo, no seu Espírito o nosso espírito repousa e descansa ao ponto de restaurar nossas forças físicas. Cristo oferecendo-se a si mesmo, o seu Corpo e Sangue, e tornou-se agradável a Deus, “na noite em que foi entregue”; Todo entregue. Integralmente entregue. O que nós dizemos da Presença real de Jesus na Eucaristia – corpo, sangue, alma e divindade – todo, inteiro.

Ao celebrar festivamente o Corpo e Sangue de Cristo a nossa vida deverá envolver-se de tal modo que sejamos um com Ele, todos, totalmente entregues, na entrega dele: “Senhor meu Deus, Obrigado Senhor, por que tudo é Teu. A Tua vida é nossa vida, é Teu o Pão, é Teu o Vinho….”

A festa do Corpo de Deus, ensina que a santidade, que espiritualidade é encarnação, interesse por quem está entre nós, ou afastado de nós, partilha, coerência, compaixão com a carne de Cristo (expressão cara a Francisco).

Para concluir um belo texto de Ruben Alves sobre a festa de Corpus Christi

[…]

Por isso me alegrei com esta festa de nome latino, Corpus Christi, em que a cristandade comemora, teimosa e inconsciente, o corpo de Cristo. Fosse a celebração da sua alma, confesso que fugiria. As almas do outro mundo, boas ou más, são assombrações que causam medo. (…). Mas, este dia, Corpus Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito, descobriu o bom mesmo era ter corpo, e até se encarnou, segundo o testemunho do apóstolo. Preferiu nascer como corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de morrer. Por que as alegrias compensavam. E nasceu, declarando que o corpo está eternamente destinado a uma dignidade divina. Curioso que os homens prefiram os céus, quando Deus prefere a Terra.

[…]

Corpus Christi: divino é o pão e toda a terra onde cresceu, com a água que o fez germinar, e o vento que o acariciou, e o fogo que o cozeu. Divino é o vinho, alegria pura que dá asas ao corpo e o faz flutuar. Coisas do corpo: dentro dele cabe o universo. Não é à-toa que a tradição fala não em imortalidade da alma mas em ressurreição do corpo. A afirmação de que a vida é bela e o divino se encontra na coisas materiais mais simples… (Tempus Fugit, pp 95-98).

Pe. Elias Sales de Souza
Diocese de Guarabira
Mestrando em Direito Canônico,
Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro.

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