‘Virei doméstica aos 12, passei por tragédias e hoje faço doutorado na USP’

Publicado em sábado, abril 1, 2023 · Comentar 


Kátia Lima foi vítima de abusos e assédio; aos 24 conseguiu voltar a estudar e hoje faz doutorado
Imagem: Arquivo pessoal

Após uma trajetória marcada por dificuldades, Kátia Giovana Costa Lima, de 55 anos, formou-se mestre em língua portuguesa e hoje é doutoranda em literatura brasileira pela USP (Universidade de São Paulo).

Caçula de sete filhos, Kátia saiu de Sorocaba, parou de estudar e começou a trabalhar como empregada doméstica na capital aos 12 anos — a mesma profissão da mãe e das irmãs. Foi vítima de assédios de patrões, namorado violento e do desemprego.

A história virou até livro e sua experiência a fez fundar o Instituto Pérolas Empreendedoras, que ajuda mulheres em situação de vulnerabilidade e jovens a conquistar uma vida melhor. Ao UOL, Kátia conta sua história.

‘Sofremos um despejo’

“Meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha 3 anos. Ela era empregada doméstica, vivia internada e hoje sabemos que tinha depressão.

Alguns anos depois, minhas irmãs Ilda e Deise vieram a São Paulo para trabalhar como domésticas. Minha mãe fez o mesmo, mas levando quatro filhos.

Foram tempos difíceis. Minha mãe alugou um apartamento no centro e, nessa época, o Juvenal [irmão] faleceu, aos 22 anos, assassinado em uma briga de bar.

Sofremos um despejo e, para não morar na rua, minha mãe conseguiu que eu, com 12 anos, fosse trabalhar como doméstica. O que seria provisório se tornou permanente porque era a profissão que dava a oportunidade de ter onde morar.

“Em todas as casas que passei, lavava, passava, cuidava de criança que chegava da escola, dava banho. Algumas famílias tinham até quatro para tomar conta. Geralmente, a folga era sábado, após o almoço, e aos domingos. Em nenhum desses empregos tive registro em carteira, 13.º salário, férias. Era escravidão”.

Fui vítima de assédio e minha atitude, na primeira vez, foi pedir conta. Saí xingada porque a mulher tinha acabado de ter bebê. Mas, como ficar lá se o marido começou a me assediar? Não tive coragem de contar.

Ele me chamava para tomar vinho, batia na porta do meu quarto. Eu não atendia. Em outra casa, o dono me ofereceu dinheiro, tentando colocar a mão no meu ombro, mas me esquivei.

‘Sofria violência’

Mesmo trabalhando muito na adolescência, arrumávamos tempo para sair, ir às discotecas, namorar.

“Aos 19 anos, entrei em uma relação abusiva. Me apaixonei e fui morar com ele. Mas sofria violência física, verbal e psicológica. Era muito vulnerável e fácil de manipular. Quando percebi e quis terminar, ele ameaçou a mim e minha família de morte. Tinha medo de ir embora”.

Foi um amigo do meu irmão que me ajudou a fugir dessa relação, levando só a roupa do corpo e uma malinha. Fui para um hotel. Paguei diárias adiantadas com o dinheiro que tinha economizado, até conseguir um emprego.

Nessa época, eu e a Deise arrumamos trabalho como caseiras em uma mansão. Morávamos nos fundos, com minha mãe e meu sobrinho. Deise era cozinheira, cuidava das roupas e eu, a arrumadeira.

Fiz curso de datilografia pois meu sonho era ser recepcionista. Nessa fase, comecei a namorar o Rodrigo, que conheci em uma balada. Foi amor à primeira vista e me sentia segura com ele, que era muito carinhoso. Foram quase 14 anos de idas e vindas.

“Ele me incentivou a voltar a estudar e, aos 24 anos, retornei ao banco escolar, dessa vez no supletivo (atual EJA), à noite, para concluir o antigo ginásio e colegial”.

‘Uma sucessão de tragédias’

Consegui o emprego de recepcionista em uma clínica e descobri a possibilidade de fazer faculdade de graça na USP. Mas, nessa fase, passei por dois lutos. Minha mãe foi atropelada, quebrou o joelho e ficou em estado de choque. Faleceu no hospital psiquiátrico, vítima de embolia.

No ano seguinte, um sobrinho de 18 anos foi assassinado. Não soubemos o porquê, apenas que houve uma briga. Fiz o reconhecimento do corpo com não sei quantos tiros.

“Quase parei novamente de estudar pois tive síndrome do pânico. Fui para a terapia. Eram muitos traumas, uma sucessão de tragédias”.

Quando terminei o ensino médio, outro irmão, Sérgio, morreu devido a um tumor na cabeça. A síndrome do pânico voltou. Tinha taquicardia, começava a suar, a pressão baixava, um horror.

‘Vocação de professora’

Fiquei um tempo desempregada e acabei indo para a área de telemarketing. Esse emprego mudou minha vida e fortaleceu meu sonho de fazer faculdade.

Entrei no cursinho e tentei vestibular por sete anos. Nos três primeiros, queria cursar direito. Fui demitida e, com o desemprego, fiquei doente, parei o cursinho, mas estudava pelas apostilas.

De novo, tive síndrome do pânico, que apareceu junto com uma ação de despejo. Na igreja que eu frequentava, havia o projeto de uma miniagência de emprego. O bispo me convidou a trabalhar ali. Comecei a elaborar cursos de atendimento, gostava de ensinar as pessoas. O trabalho social me despertou para a vocação de professora.

“Tentei letras e entrei na USP. Foi minha irmã Ilda quem me ligou cedo me dando os parabéns. ‘Estou com o jornal nas mãos. Você passou!’, ela disse. Não sabia se ria, chorava, gritava ou pulava. Foi maravilhoso. Foi uma sensação única”.

Logo consegui um estágio em escola e, em 2010, aos 43 anos, me formei e fui contratada como professora pelo estado. Assim que terminei o curso de letras, fiz iniciação científica, terminei o mestrado em 2014 e, em 2021, comecei o doutorado. Tem sido uma transformação.

Na igreja, me especializei em atender famílias enlutadas. Sou pastora, também escrevi um romance e agora busco editora.

Com sete amigas, ainda fundei o Instituto Pérolas Empreendedoras, no ano passado, para auxiliar mulheres em situação de vulnerabilidade e jovens a empreender e conquistar seus objetivos de vida. Entendo a dor dessas pessoas.

Podemos transformar vidas por meio da educação e deixar um legado.”

Redação/Uol 

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