Resgatado na lama, menino de 2 anos perde a família em São Sebastião; choro guiou bombeiro

Publicado em domingo, fevereiro 26, 2023 · Comentar 


Foto: FELIPE RAU

Daqui para frente, quando passar a mão na cabeça, o menino de dois anos terá uma cicatriz de cerca de 10 centímetros para lembrá-lo do que ainda não entendeu, mas já sente: o dia em que sua mãe, pai e dois irmãos sumiram de sua vida. Domingo, 19 de fevereiro de 2023, o mesmo dia em que ele foi retirado de uma montanha de lama, apenas de fralda. Em meio ao entulho, seu choro baixinho guiou um bombeiro civil até o canto de ar formado por uma parede soterrada por escombros em São Sebastião.

Um choro fraco, quase um lamento, fizeram voluntários e moradores da rua crerem que era o barulho de um cachorro ferido. “Ele nunca foi de chorar. Entrava e saía da minha casa o dia inteiro”, diz Lucian Soares, de 34 anos, que viu Aleffi Miguel da Conceição Costa nascer. “Hoje (sexta-feira) foi a primeira vez que ele falou alguma coisa desde domingo (dia do temporal). Pegou na mão da minha filha e a chamou para brincar com esse carrinho”, contou.

Foi o mesmo dia em que os corpos de seu pai e irmãos foram encontrados. Os pais do menino, Adriel Costa e Maria dos Gomes da Conceição, e seus irmãos Adryan, de 8 anos, e Mariely, de 15, além dos primos Rafael, de 24, e Keison, de dois, se foram. Da família, sobraram o tio, Benedito Gomes, e os avós, no Piauí.

O garoto, de olhos pretos vivíssimos, tem nariz e bochecha esfoladas e uma enorme sutura na parte de trás da cabeça. Ele se abraça aos brinquedos como se fossem sua família.

São Sebastião, onde o menino nasceu e perdeu os parentes, recebeu mais de 600 milímetros de chuva em 24 horas, o triplo da média esperada para todo o mês de fevereiro. De acordo com a Defesa Civil de São Paulo, são cerca de 3,5 mil desalojados e 59 mortos.

Assim que foi retirado dos escombros, o gaorto foi levado para o Instituto Verdescola, no mesmo bairro, onde recebeu os primeiros socorros. “Quando ele chegou aqui, nem chorar ele chorava, só ficava nos olhando”, afirma Fernanda Carbonelli, uma das diretoras da ONG. De lá, Aleffi foi levado para um hospital em Caraguatatuba, cidade também no litoral norte.

‘Orei para Deus salvar o Aleffi’

O garoto chegou com escoriações e um corte profundo na cabeça. “Quando o vi no hospital, achei que ele tinha algum problema de tão inchada que estava a cabeça dele. Nem abria os olhos direito”, diz Leonir Silva Neto, que estava com o pai internado no mesmo hospital e, alertado pelos moradores de Vila Sahy, permaneceu com o garoto durante dois dias até a criança receber alta. “Orei para Deus salvar o Aleffi e…não tem explicação. Em menos de 24 horas, (a cabeça) desinchou e estava normal. Nem parecia a mesma criança”, diz.

Talvez nunca mais seja. As consequências de vivenciar um trauma desse tamanho durante a primeira infância dependem do apoio que crianças como Aleffi vão receber a partir de agora. “Alguns dos pontos a serem avaliados são a vulnerabilidade do indivíduo e vivência do trauma e a resposta (cuidado) que se dá a ele”, afirma o psiquiatra Daniel Zandoná, coordenador médico do PROVE Kids, ambulatório de psiquiatria infantil do programa de assistência a vítimas de violência e estresse pós-traumático da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Mais de 1 bilhão de crianças no mundo estão “extremamente expostas” a impactos da crise climática, conforme o Unicef, braço das Nações Unidas para a infância. No Brasil, são 40 milhões nessa situação.

“As crianças e adolescentes foram as maiores vítimas da tragédia. Até agora, das 27 vítimas com identidades e idades divulgadas, 15 são crianças e adolescentes”, disse ao Estadão o secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves. “Também é visível nos alojamentos que crianças e adolescentes representam 30% a 40% dos desabrigados que estão nesses espaços.”

No sábado, 25, enquanto corria atrás das certidões de óbito do cunhado e dos sobrinhos, Benedito, tio de Aleffi, sabe apenas que irá cuidar do menino. Daqui em diante, Aleffi deve ser sua responsabilidade. “Ele (o tio) não é de falar muito, é uma pessoa humilde, mas trabalhador e muito sério”, diz Luciana, vizinha e melhor amiga da mãe do garoto. “Mas ele já disse que vai criar o sobrinho, nem questionou.”

Segundo Castro Alves, uma parceria firmada pela prefeitura de São Sebastião e a ONG Visão Mundial está apoiando as crianças e escolas afetadas pelas chuvas. O objetivo é que o acompanhamento se estenda e possa chegar a meninos como Aleffi.

Na sexta-feira, quando o Estadão se encontrou com o garoto, ele só olhava para todos ao redor, como que curioso sobre o motivo de tanta atenção. novos brinquedos e doações – entre elas uma embalagem de leite especial para crianças com alergia à lactose, de cerca de R$ 200, que ele precisa. Entre a lata sem graça e um Hulk quase de seu tamanho, abraçava o monstro-herói verde.

Da Redação 
Com Estadão/Por Por Emilio Sant’Anna e Felipe Rau

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